Era natal. Famílias se reuniam e celebravam a vida. Ela passaria
a noite sozinha, numa ceia descrita em “coxinha de frango e suco de laranja”,
que se come nessas paradas em
viagens. Ainda na rodoviária, colocou o segundo pé e esperou
que a escada rolante a levasse até a plataforma 10. Ela fez esse percurso quase
todos os meses, por alguns anos. Mas agora, dois anos depois, aquele caminho
parecia interminável. Conseguiu rever toda a sua vida naqueles quarenta
segundos se equilibrando entre tantas malas.
Subiu no ônibus, sentou-se e colocou o fone de ouvido. Nem
ela acreditava no que estava fazendo: deixando para trás tudo o que ela sempre
achou que nunca tivesse a oportunidade de abandonar e indo encontrar um grande
amor. Pensou em
desistir. Abortou a idéia no segundo seguinte. Outro dia ela
leu uma frase da Martha Medeiros que dizia: “Nossa insanidade tem nome: Vontade
de viver até a última gota.” Ela precisava quebrar os seus próprios medos, encarar
o passado de novo pra então decidir o que fazer com o futuro. Precisava viver
aquela história até a última gota.
A noite fora longa demais. Dormiu pouco. O coração ora
parava, ora quase saia pela boca. Rascunhou algumas palavras no bloco de notas
do celular na tentativa de aliviar a ansiedade. Teve vontade de chorar, mas
depois riu de si mesma. Estava orgulhosa pela sua coragem.
O dia clareou e finalmente a placa na estrada indicada a sua
chegada ao destino. Pensou em tudo o que viveu nesses dois anos. Em quanta vida
aconteceu sem que pudesse ter a supervisão daqueles olhos puxados, castanhos e
brilhantes. Ela nunca se esqueceu do gosto do beijo, do quanto era bom o
abraço, da forma mágica como se encaixam para dormir de conchinha. Riu, porque
parecia patético ter saudades da conchinha. Lembrou-se que estar ali, há poucos
metros de encontrá-lo novamente, depois que tudo que sofreu, era mais do que
patético, mas que esse era um dos momentos mais felizes do ano.
Os olhares finalmente se cruzaram. Desconheceram-se. Aliás,
como é que pessoas que se amaram tanto por anos se desconhecem após dois anos
de distância? A vida mudou tanto! Mas ele a abraçou e ela sentiu que pensando
bem, talvez as coisas não tenham mudado tanto quanto parecia: a presença dele
ainda estremecia a sua existência.
Depois de alguns beijos e um banho de mangueira, porque o
calor daquela cidade é insuportável, ela deitou no chão geladinho do quintal
daquela casa enorme cheia de lembranças e amor. Contou-lhe sobre a faculdade,
os amigos que fez, os que manteve, as viagens que realizou, os sonhos que
conquistou, os romances que teve e o namorado que faleceu. Ele, sentado ao lado
dela, encarando-a e tragando um cigarro sabor menta, contou das meninas que
passaram na sua vida nesse tempo, depois contou sobre a cidade nova, os amigos
novos, o emprego novo e os planos para o futuro. Ela teve certeza de que não o
conhecia mais. Ele não tinha mais dezessete anos e nem era mais sustentado
pelos pais. Ao saber de tantas coisas “novas” na vida dele e por não fazer
parte de nenhuma delas, sentiu-se distante dele. Sentou-se também. Encarou aqueles
olhos que por tantas noites sonhou rever. Pensou em dizer que tinha medo de
continuar não fazendo parte da vida dele. Mas só conseguiu pronunciar: “Sabe
que você fica charmoso fumando? Me dou conta que nos tornamos mesmo adultos.”
Ele riu tímido.
Conversaram e se amaram o dia todo. Mesmo percebendo que
tantas coisas haviam mudado na vida do outro, de alguma forma, ainda sentiam-se
íntimos, parte um do outro. Parte não das suas histórias, mas da alma, do amor
que sentiam pelo outro e pela vida.
Entre um beijo e outro, aliás, ela reparou que o beijo se
encaixa melhor agora, depois dessa distância toda. O abraço também ficou mais
acolhedor. Mas o beijo na testa que ele dá, a fez perceber que ele é mesmo a única
pessoa capaz de fazê-la arrumar as malas. Talvez com a distância, experiências e
amadurecimento, tenham aprendido a se amarem mais. Tenham percebido o valor de
tudo o que um dia construíram juntos. Hoje demonstram ter entendido a importância
que um tem na vida do outro.
Poucas horas antes dele voltar à vida nova dele, na cidade
nova, com amigos e experiências novas, as quais ela não conhecia nem por foto,
ela chorou. Não um choro desesperado de quem não quer perder quem ama. Ela sabe
que eles nunca se perderão. Chorou porque ficou feliz por conhecer o adulto que
ele se tornou, por poder apresentar a mulher que agora ela é. Por entender que o que quer que tenham sido um
para o outro, ainda são e sempre serão. Ele quem vai ouvi-la dizer o quanto ela
adora dirigir. Ela quem vai atender ao telefone logo pela manhã, ainda
sonolenta, para ouvi-lo perguntando das novidades e depois aquele silencio
enlouquecedor que só eles sabem compartilhar. No fundo ele liga só pra ouvir a
voz dela e ela atende só pra poder ouvir a voz dele de novo. Precisam um do
outro como precisam de oxigênio para viver.
Uma e vinte da manhã. Hora de ele partir. Da janela ele manda
um beijo. Encaram-se por alguns minutos até aquele ônibus os separarem de novo,
por sei lá quanto tempo. Valeu o reencontro. Valeram os beijos. Valeram os
abraços. Ela também volta pra casa. Desembarca na 10.
Depois de tanta distância, finalmente, assumem que são um o
porto seguro do outro.
Ele liga dias depois. Já tem saudades. Quer encontrá-la no
final de semana. Ela arruma as malas de novo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário