24 de março de 2012

Eu, vovó e os anjos.

Um silencio profundo nessa noite. São três e quarenta e cinco da manhã. Lá fora o vento bate na janela, anunciando uma forte chuva. Aqui dentro está claro. Alguns funcionários vestidos de branco, conhecidos como enfermeiros, mas denominados por mim como “anjos”, cuidam de alguns enfermos. Estou numa cadeira ao lado da maca em que minha avó dorme inquieta. A observo como se nessa enfermaria estivéssemos sós.

Tenho visto como o seu rosto carrega marcas do tempo. As mãos cheias de calos revelam anos de trabalho árduo. Os cabelos cinza pérola, agora já bem ralos, demonstram uma linda senhora vaidosa.

Há um ano os médicos a diagnosticaram com um câncer raríssimo no esôfago. Senti imenso medo pela grande possibilidade de perdê-la. A quimio e a radioterapia a deixaram fraquinha. Um tratamento sem sucesso. O maldito se espalhou para órgãos. Estou a quinze dias seguidos com ela aqui no hospital. Não me canso de olhar a sua beleza. Quantas mil experiências o seu corpo, agora fraco e cansado, denunciam.

Os anjos a tratam com carinho e respeito. Quando está acordada, conversam com ela, estão sempre oferecendo água ou alguma comida. A velhinha é carismática e já conquistou todos aqui na enfermaria. Os anjos a deixam sempre penteadinha e com o inseparável batom. Outro dia um dos anjos, a enfermeira Lucia, até lhe trouxe um presente, um lindo buquê de flores. Disse que é para alegrar a vida, assim como minha avó alegra o hospital quando está animada com a possibilidade de voltar para casa.

Agora a pouco, após relembrar momentos da minha infância, quando morávamos juntas, quando ela cozinhava para a família e a casa era cheia de primos, com lágrimas nos olhos me direcionei ao médico, o DR. Anjo e o questionei: “Até quando, Doutor?”.

É o ápice do desespero. O câncer invadiu o corpo da minha avó, roubando-lhe passeios, momentos e a vida. A deixou fraca e está matando-a os poucos. Ela está morrendo há um ano. Há um ano não vemos mais brilho em seus olhos e nem conseguimos conversar trinta minutos sem chorarmos. Ela sabe que é o fim. Nós sabemos. Eu não quero que ela sofra ainda mais. Será uma dor insuportável viver sem sua presença marcante, mas não quero que ela também sofra com isso.

O DR. Anjo, que já se tornou um amigo, visivelmente abatido e desconcertado com a minha pergunta, só conseguiu responder: “Questão de horas, Clarinha. Questão de horas.”

Nem sei como reagir a uma resposta dessa. Não quero que minha avó sofra ainda mais. Não quero ficar sem ela. Minha vontade é que Deus, por algum descuido lhe fizesse eterna. Chorei feito criança. Lembrei as férias, as viagens. O quanto ela ficou feliz quando me formei do Ensino Médio. No apoio e nos conselhos maravilhosos que me deu quando sofri por amor. O quanto ficou feliz quando entrei para a faculdade de Direito. O quanto eu tive medo de decepcioná-la quando decidi abandonar o Direito e iniciar o Jornalismo. Ela me acolheu com um sorriso nos olhos e nos lábios, abraçou-me carinhosamente e disse que o importante era ser feliz. Vó, e como fomos felizes, não é?

Depois fiz questão de recordar sua vida até eu nascer. Vinda de família pobre, casou-se ainda sem estudo. Perdeu uma filha. E como deve ser insuportável essa perda. Contrariou estatística e terminou os estudos quando já tinha quatro filhos pequenos. Com mais de quarenta iniciou a faculdade e tornou-se uma professora querida por todos seus alunos. Aposentou-se. Dedicou-se aos filhos, aos netos e há pouco tempo, para os bisnetos. Nem sabemos como retribuir tanta dedicação.

Embora já sofrendo muito e merecendo um descanso dessa vida, eu olhei para o Dr. Anjo e só consegui dizer: “Doutor, faça tudo o que for preciso para mantê-la viva!”.

Sei que a qualquer momento, enquanto eu a olho dormir inquieta, ela pode ter uma parada cardíaca ou qualquer outro mal súbito. Já posso imaginar a equipe da enfermagem a levando às pressas para a sala de emergência. Já sei que será preciso entubá-la, será feita massagem cardíaca e vão usar o desfribrilador para tentar reanimá-la. Em vão. Tudo será em vão. Amanhã à tarde estaremos observando o seu corpo frio e sem vida. Depois voltarei para minha casa e terei que aprender a viver com a ausência, com a saudade, com o vazio eterno que causará.

Voltar para a casa. Para o trabalho. Para a vida. E eu nem sei como fazer isso. Não sei de onde obter forçar para continuar sem ela.

Quando tudo parecer perdido na minha vida, quem vai me ouvir por horas e no final dizer a mesma frase carregada de sabedoria – que eu sempre ouço e sempre preciso ouvir  de novo?
Calma, Clarinha! Isso também passa.”


(Lieda Gomes)
- Escrito em 14 de Março de 2012.
- Vale lembrar que é uma história de ficção. Ela é inspirada em várias histórias que já vivi. Vovó está bem e Clarinha, talvez seja o meu subconsciente, mas por ora é apenas uma criação minha.

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