A moça do carro azul.
Era a semana que antecedia o Natal. Os carros entupiam as ruas,
todos querendo aproveitar um sinal verde, uma vaga para estacionar, chegar mais
cedo ao shopping.
Eu era apenas mais uma no trânsito, quase sem olhar para os lados, concentrada em alguma tarefa inadiável. Mas de repente o que era movimento e pressa à minha volta parou.
Estava fazendo o retorno numa grande avenida quando passou por mim um carro azul com uma moça na direção. O vidro dela estava aberto e ela não parecia ter nada a esconder: chorava. Não um choro à-toa. Ela chorava por uma dor aguda, uma dor de respeito, era um transbordamento. Passou reto por mim e eu concluí meu retorno, e quis o destino que a próxima sinaleira fechasse e alinhasse nossos dois carros, eu ao volante do meu, atônita, ela ao volante do dela, desmoronando.
Eu deveria ter ficado na minha, mas era quase Natal, e quase
todos estão tão sós, quase ninguém se importa com os outros, e antes que
trocasse o sinal, abri a janela do meu co-piloto - sem nenhum co-piloto - e
perguntei: "Você precisa de ajuda?".
Ela estava com a cabeça apoiada no encosto do banco, olhando em
frente pró nada, chorando ainda. Então virou a cabeça lentamente para mim -
pensei que iria dizer para eu me preocupar com a minha vida - e disse
serenamente: "Já vai passar". E quase sorriu.
Eu respondi "fica bem", fechei o vidro e avancei meu
carro um pouquinho pra frente, para desalinhar com o dela e deixá-la livre dos
meus olhos e da minha atenção.
Passei o resto do trajeto tentando adivinhar se ela havia
rompido uma relação de amor, se havia perdido um filho recentemente, se havia
recebido o diagnóstico de uma doença grave, se havia discutido com o marido, se
estava com saudades de alguém, se estava ouvindo uma música que a fazia lembrar
de uma época terrível - ou sensacional. O que a fazia chorar quase ao meio-dia,
numa avenida tão movimentada, sem nem mesmo colocar uns óculos escuros ou
fechar o vidro? Que desespero era aquele sem pudor e por isso mesmo tão
intenso?
Garota, desculpe invadir com minha voz a sua tristeza. Era quase
Natal e eu não agüentei ver você naquele quase deserto, num universo à parte,
incompatível com a quase euforia com que recebemos as viradas, as
mudanças, a esperança de olhos mais secos. Faz uma semana, lembra? E agora
falta quase nada pra gente abraçar a ilusão de que tudo vai ser novo. Que
seja mesmo, especialmente pra você. Feliz 2006.
(Martha Medeiros - Doidas e Santas)
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